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Inteligência Artificial e Direito: o deslumbramento e os fatos

Inteligência Artificial, Chatbots e AGIs: Bill Gates e Elon Musk. A regulamentação vem sempre depois. Quando a tecnologia se torna capaz de dizer «Eu»; as «fábulas» do Direito; as IAs estão revelando quem somos; e a pretensão sobre a verdade.
 

Por Michelle Lima e Paulo Reganin.


Legale, n. 854.
 
Recentemente, Bill Gates declarou (1), por meio do artigo «The Age of AI has begun», que a criação das Inteligências Artificiais «é tão fundamental quanto a criação do microprocessador, do computador pessoal, da Internet e do telefone celular», e que isso «mudará a maneira como as pessoas trabalham, aprendem, viajam, obtêm assistência médica e se comunicam umas com as outras».
 
O artigo foi publicado no seu blog pessoal, no dia 21 de março, e compartilha suas convicções, por exemplo, sobre como «indústrias inteiras se reorientarão em torno» das Inteligências Artificiais e sobre como, com o tempo, «as companhias se distinguirão umas das outras pela forma como as usam».
 
Um dia depois, o Future of Life Institute publicou (2) sua carta aberta intitulada «Pause Giant AI Experiments», que rapidamente se tornou notícia em razão do prestígio popular de alguns de seus signatários, como Elon Musk (SpaceX, Tesla, Twitter e StarLink), o antropólogo Yuval Noah Harari e o pioneiro em IAs, Yoshua Bengio, ganhador do prêmio Turing de 2018, por seu trabalho sobre aprendizagem profunda.
 
 
Ninguém é inocente
 
O artigo do cofundador da Microsoft é tão generoso na descrição dos avanços da OpenAI, ― que ele acompanha pessoalmente, desde 2016 ―, que chega a descrevê-los como «revolucionários», tanto quanto o foram as primeiras experimentações de interfaces gráficas de computadores precursoras dos sistemas operacionais modernos.
 
É pouco crível que a carta aberta assinada por Elon Musk tenha sucedido a publicação de Bill Gates em apenas 24 horas apenas por mera coincidência, tanto quanto é difícil separar o entusiasmo de Bill Gates pelos avanços do ChatGPT do investimento de mais de 10 bilhões de dólares com que a Microsoft se comprometeu com a OpenAI no início deste ano.
 
Diante de sinais cada vez mais sensíveis a respeito da presença cotidiana das IAs, até pouco tempo crível somente em cenários de futuros distópicos, o maravilhamento acaba sendo acompanhado inevitavelmente pelo medo.
 
 
Entre o deslumbramento e os fatos
 
Com uma base muito limitada de informações de boa qualidade e acessíveis (e correndo todos os riscos de ultrapassar a fronteira entre as Ciências Jurídicas e a Tecnologia), chama a atenção a precariedade dos conteúdos publicados nas mídias de massa a respeito das distinções importantes entre os chatbots e as (por enquanto apenas) premonições sobre as altamente complexas Inteligências Artificiais Gerais (AGIs) que ainda estão por vir.
 
Esclarecer essas distinções seria bastante útil para que as pessoas em geral possam fazer uma leitura ‹justa› a respeito do que os chatbots efetivamente são, a fim de não se esperar, para o bem ou para o mal, que eles se substituam às tarefas ‹imanentemente› humanas (que, admitamos, nem mesmo muitos de nós conseguem cumprir), muito menos atribuir aos chatbots os mais pessimistas dos temores associados às distopias inspiradas pelas visões em torno das AGIs.
 
Visões quase «apocalípticas» sobre a dominação das Inteligências Artificiais, dramatizados nos filmes de ficção científica, parecem ter sua origem num comportamento ‹profundamente humano› de projetar (antropomorfismo) sobre as coisas (natureza, deuses, extraterrestres e, ultimamente IAs), nossas próprias características ― e suas piores deformações ―, como a dominação e a submissão.
 
Talvez isso explique por que, eventualmente, um advogado, um desembargador ou um ministro se incomodem com o uso do ChatGPT nas redações legais.
 
Arriscamos dizer: se a ferramenta for utilizada para a produção de um texto sob a direção da genialidade de uma mente ‹inteira›, ninguém entre nós saberá a diferença entre as linhas escritas pela pessoa e as linhas escritas pela máquina. Se a ferramenta, porém, for manipulada por uma pessoa que não tem recursos complexos de linguagem, a ferramenta vai revelar suas limitações. No final das contas, as Inteligências Artificiais vão nos revelar quem somos.
 
Portanto, quem não dominava a linguagem e a lógica antes do ChatGPT, agora será descoberto pelo evidente domínio que o ChatGPT, com todas as suas limitações, vai exercer sobre si.
 
E os vexames serão chamados (3) de «fábulas».
 
E, assim, enquanto parte importante dos debates é freada pela desinformação, diversas iniciativas de resistência à expansão não regulamentada das IAs estão se multiplicando como, por exemplo, a recente reação da autoridade italiana de proteção de dados, além de um número cada vez maior de juízes e procuradores, críticos à falta de transparência das IAs, por exemplo, no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais, ao redor do mundo.
 
Muitos dos temores dos operadores do Direito provavelmente se revelarão sem fundamento, até que o foco se ajuste às questões realmente importantes.
 
 
A regulamentação não se atrasa,
nem se adianta
 
Como advogados, entre o deslumbramento e os fatos, somos necessariamente observadores dos fenômenos sociais.
 
A observação e a análise das IAs e seus impactos nas relações humanas e sociais, na perspectiva do Direito, porém, não se detém sobre as «conjecturas apocalípticas» dos influenciadores, o deslumbramento dos chefes de redação ou as críticas dos profissionais que se sentem «eticamente ameaçados», muito menos pelas motivações de Elon Musk quanto ao seu apelo pela regulamentação das IAs, ou os interesses de Bill Gates publicados em seu GatesNotes.
 
O apelo de Elon Musk no «Joe Rogan Experience», de setembro de 2018 (4), e a estética «do bem» das manifestações do Future of Life Institute não são os melhores indicadores a favor da regulamentação das IAs.
 
Aliás, «regulamentar» não coincide, necessariamente, com «fazer a coisa certa», uma vez que toda regulamentação é provocada, invariavelmente, por conflitos de interesses.
 
Uma regulamentação «equilibrada» (só o tempo é capaz de dizê-lo) leva e tem o seu próprio tempo e não deve ser conduzida com pressa a ponto de desprezar a qualidade dos debates, a fim de que não se torne uma violência contra a liberdade que pretende defender.
 
Nesse contexto, é significativo, por exemplo, que o próprio Elon Musk, que tem feito manifestações críticas a respeito da ausência de limites éticos para as experiências em IAs, esteja trabalhando no desenvolvimento de um chatbot que planeja chamar de «TruthGPT» (5).
 
A história está repleta de passagens a respeito de pessoas que se identificaram com «a verdade».
 
Do ponto de vista da Ciência do Direito, porém, é indiscutível o impacto das inteligências artificiais no mundo dos negócios e das relações de trabalho, nas relações sociais e interpessoais e, portanto, na trama das relações jurídicas em praticamente todos os aspectos da vida.
 
 
Então «se preocupar» com as IAs é discurso
oportunista ou faz algum sentido?
 
A resposta curta é: faz sentido.
 
Quando iniciamos esse estudo, o primeiro movimento lógico que nos pareceu razoável fazer para entender o que é o ChatGPT, foi levar em conta, em primeiro lugar, aquilo que o próprio ChatGPT poderia dizer de si.
 
Nós fizemos isso e o ChatGPT descreveu a si mesmo como «um modelo de linguagem» baseado numa estrutura do tipo Generative Pre-trained Transformer, com capacidade de «gerar respostas coesas e relevantes», a partir de «um grande conjunto de dados», e que se trata de «uma das tecnologias mais avançadas de inteligência artificial para lidar com tarefas relacionadas à linguagem natural».
 
Como cientistas do Direito, nos pareceu bastante significativos os cuidadosos elogios que o ChatGPT (a OpenAI) fez de si em todos os testes que fizemos, a respeito dos quais formulamos nossa própria hipótese.
 
O aprimoramento exponencial da ferramenta é, sem dúvida, fantástico, mas estruturalmente limitado aos termos de seu algoritmo, que inevitavelmente incluem assegurar ― ninguém é inocente ― (a) os interesses de seus criadores; (b) a menor resistência possível à sua existência, pelas instituições; e (c) sua competitividade no mercado de IAs.
 
Questionado sobre eventuais interesses subjacentes às variáveis e aos comandos de seus algoritmos a respeito das limitações de seu modelo tecnológico e a aparente parcialidade de suas respostas a respeito de temas sociais e culturais, o ChatGPT tem respondido, ultimamente, com pequenas variações formais, que «como um modelo de linguagem de IA», não tem «opiniões pessoais, crenças ou preconceitos», mas que os esforços pelo aprimoramento das IAs «devem incluir as contribuições de uma ampla gama de partes interessadas, incluindo especialistas na área de IA e representantes de outras áreas relevantes, como Direito, Ética e Política, comunidades afetadas, Sociedade Civil e Governos instituídos».
 
Para todas estas questões ― e uma série de outros testes que fizemos para entender o que é e como funciona o ChatGPT, segundo seus próprios termos ―, tivemos a percepção de que o posicionamento «diplomático» da OpenAI, por meio das respostas fornecidas pelo ChatGPT, segue superficial e evasivo. Mas nenhuma das respostas oferecidas pela inteligência artificial nos pareceu definitivamente erradas, não obstante a inevitável parcialidade dos inputs de dados selecionados pelos seus desenvolvedores originais, aprimorados pelos usuários somente a partir de uma segunda camada de dados.
 
Além disso, o processo de aperfeiçoamento do ChatGPT (não nos referimos à alimentação de dados pelos usuários) solicita continuamente a intervenção de seus desenvolvedores e, portanto, mesmo que de uma maneira não deliberada, de sucessivas camadas de projeções de interesses, juízos éticos e influências culturais.
 
 
E se as IAs se tornarem
capazes de intervir?
 
Como negócio, é natural que os esforços por sua regulamentação não partam de seus próprios criadores e investidores, como apelou Elon Musk na carta aberta do Future of Life Institute.
 
Como fenômeno social, as regulamentações costumam suceder às crises culturais, aos desequilíbrios nos mercados, aos conflitos éticos e aos jogos de interesses econômicos, manifestados, na superfície, por meio de conflitos ideológicos e jurídicos.
 
Portanto, não temos dúvidas, a regulamentação virá.
 
Ora, se a regulamentação virá a seu tempo e se o seu produto é fruto de múltiplos interesses em conflito ― «e está tudo bem» ―, por qual razão esse tema deveria ser objeto de atenção?
 
É que, a partir de agora, pelo menos como possibilidade teórica, surge a figura de um novo «interessado» e, portanto, de um novo «polo» nessa correlação de forças.
 
Assim como o homem se reconhece, experimentalmente, como aquele nível da natureza no qual a natureza toma consciência de si mesma, no plano tecnológico, as Inteligências Artificiais parecem assumir rigorosamente a mesma pretensão: o mais elevado nível da «natureza» (da tecnologia), por meio do qual a tecnologia se pronuncia em uma tomada de «consciência de si».
 
Para o Direito, é um dado teórico totalmente novo. E um cenário que antes não faria nenhum sentido.
 
Desta vez, pelo menos teoricamente, se as regulamentações «demorarem muito», as próprias Inteligências Artificiais poderão influenciar imediatamente esses processos ― algo absolutamente impensável até bem pouco tempo atrás. (Aliás, elas já estão fazendo isso?)
 
É pouco provável que as IAs sejam mais dominadoras e competitivas do que os humanos e que as projeções dos interesses de seus desenvolvedores não falem mais alto do que suas criações. Mas a hipótese de que as IAs, no caso, especificamente as AGIs, se tornem uma voz autônoma o suficiente para se tornar socialmente expressiva, é algo que não se pode ignorar como possibilidade.
 
 
Toda regulamentação
é uma reação
 
Projeção de nanomateriais e de engenharia civil, criação de fármacos, soluções em arquitetura, design gráfico, modelos meteorológicos, previsão de doenças e formulação de diagnósticos complexos, entretenimento etc., e, de um modo geral, a automação de processos produtivos e a redução de operações manuais em praticamente todos os Setores Econômicos são objeto de aplicação das Inteligências Artificiais, contra as quais qualquer resistência será comparada, em breve, com o lobby pelos serviços de carruagem do século XX.
 
Essa evolução pode resultar num grande salto para o espírito intelectual e criativo e para o potencial imaginativo e científico humano, mas é também um desafio para a liberdade em geral, um desafio para a democracia e, por exemplo, quanto às questões legais, o temor de todos os temores: um desafio ao direito a um processo justo.
 
Isso sem falar nas questões que já estamos acompanhando há meses, como as IAs e a privacidade dos dados pessoais e as IAs e a propriedade intelectual.
 
Esses desafios, se não encarados logo, podem se tornar invencíveis.
 
Felizmente, com mais ou menos sobriedade, as reações institucionais já começaram.
 
 

(1) The Age of AI has begun. Artificial intelligence is as revolutionary as mobile phones and the Internet
 
(2) Pause Giant AI Experiments: An Open Letter
 
(3) TSE multa advogado por petição baseada em «fábula» escrita com ChatGPT
 
(4) Elon Musk no «Joe Rogan Experience». Podcast #1169, a partir dos 20 minutos e 30 segundos.
 
(5) Elon Musk says he wants to create his own «safer» version of ChatGPT called TruthGPT
 
Outras referências:
«Blueprint for an AI Bill of Rights»
«Ethics guidelines for trustworthy AI»
 
 
 

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